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O Machado de Xangô - Conto. Parte 2

Quando finalmente conseguiu sair do terreiro e dirigir-se para casa já havia definitivamente anoitecido. E o céu, outrora límpido agora estava escuro, sem nenhum sinal de luz da lua ou de quaisquer estrelas.

Astolfo foi pensativo no caminho para casa, divagando pelas ruas enquanto tentava assimilar o que havia ocorrido. Ele que fora criado em seio espiritualista, teve a mãe como dirigente de um terreiro e o pai como médium trabalhador de uma casa espiritualista, cresceu entre sons de atabaque, de defumações e saias brancas longas passando por ele enquanto brincava na sala de casa. Sua maior alegria na infância era o mês de setembro quando sabia que iria comer caruru e muitos doces nas festas de Ibeji que sua mãe realizava.

Quando chegou na adolescência, junto com as mudanças no corpo, crescimento de barba, puberdade, outras coisas começaram a surgir. Astolfo começou a sentir coisas, a ouvir vozes e foi procurar a mãe. Mãe Joana como era conhecida disse o que o jovem já desconfiava, ele era médium. A sacerdotisa o aconselhou a terminar os estudos, aproveitar um pouco mais a juventude e depois começar a educação mediúnica. Astolfo seguiu os conselhos da mãe.

Ao terminar o ensino secundário ele passa no vestibular para o curso de Direito, sempre quisera ser advogado, e muda-se de cidade, indo morar na capital do estado. Um pouco antes de mudar-se Astolfo visita a mãe em sua casa para pedir-lhe axé na nova jornada. A dirigente lhe prepara alguns banhos e preceitos. Um pouco antes de despedir-se do filho ela o relembra que é médium e que agora ele já possui idade e condições de educar sua mediunidade, seja em um terreiro como este ou em qualquer outro lugar.

Passam-se alguns anos e o jovem Astolfo agora um quase formado advogado esqueceu-se completamente de sua mediunidade, em nas noites em que poderia estar estudando e dedicando-se ao seu aprimoramento pessoal, ele gasta em bares, boates, jogos. Não que isso seja repreensível, é salutar o divertimento, mas jamais em decorrência da negligência consigo mesmo.

Em uma dessas noites, o jovem conhece Cleone, uma jovem estudante de psicologia. Eles começam a sair e depois de algum tempo estão apaixonados. Ambos terminam os estudos no mesmo periodo e então resolvem se casar. Cleone que tivera feito seu TCC sobre o inconsciente freudinano nas religiões brasileiras começou a frequentar uma tenda espiritualista e hoje era médium da casa, descobrindo-se filha de Obá.

Pouco antes do tão esperado dia do casamento, que ocorreria somente no cartório pois Astolfo recusou-se totalmente a ganhar as bençãos dos Orixás na casa onde Cleone era médium, numa das sessões de atendimento Obá manifestou-se mediunicamente em sua filha advertindo-a dos perigos que viriam nesta união, pedindo à filha que caso quisesse mesmo entrar em matrimônio com Astolfo que tivesse sempre muito cuidado e que não "perdesse sua orelha por amor".

Os anos foram se passando, os filhos vindo e Cleone já estava na terceira gestação. Astolfo cada dia mais distante da família, tornara-se um advogado famoso, porém envolvido em esquemas de corrupção no governo de onde vinham seus maiores clientes. Foi com uma de suas clientes, uma senadora da base aliada de um governo que vinha promovendo um golpe na democracia que Astolfo começou a trair Cleone.

Cada vez mais envolvido em corrupção, Astolfo também começa a beber, já que  "um abismo atrai outro". Já quase não para mais em casa estando sempre em Brasília ou com os "amigos" políticos ou com a amante. E foi numa dessas estadias em Brasília tudo isso aconteceu.

Tanto divaga em pensamentos que Astolfo nem apercebeu-se que havia começado uma tempestade. Chovia copiosamente e o advogado estava ensopado. Já passava das dez horas e não havia nada aberto onde ele pudesse encontrar abrigo. Ligou para a amante mas essa não atendeu suas ligações, de igual maneira seus clientes que estavam todos na casa do então presidente discutindo uma reforma trabalhista. Astolfo lembrou-se de que era filho de Xangô e rogou ao senhor dos raios que lhe ajudasse. Ao terminar a oração, o tempo parece que tinha parado. Ele sente uma forte presença e se vira para ver quem é.

- continua....

O Machado de Xangô - Conto

Noite de quarta-feira, Astolfo sai pontualmente do serviço ás 18:30 horas em direção a sua casa e ao merecido descanso. Merecido ao seu ver pois na verdade Astolfo procrastinou praticamente o dia todo deixando o recém contratado estagiário sobrecarregado, além de culpá-lo por não ter conseguido terminar todos os relatórios em tempo.

No caminho para casa, que hoje Astolfo está fazendo a pé, ele passa por uma pequena casa de madeira, repleta de flores no portão, com som de palmas vindo de dentro e um forte perfume de ervas. Está diante de uma casa espiritualista, uma pequena tenda caseira de Umbanda que está em obrigação à Xangô. Para diante do portão de onde consegue avistar algumas pessoas vestidas de branco, colares coloridos no pescoço, pés descalços. Observando mais um pouco ele consegue avistar uma mesa próxima a uma parede onde estão dispostas algumas imagens. Dentre as imagens Astolfo consegue reconhecer algumas, como a de Jesus com os braços abertos no ponto mais alto da mesa, e também a de Nossa Senhora Aparecida. Outras são familiares porém ele não consegue identificar de onde as conhece. Outras são totalmente desconhecidas como a de um senhor negro sentado num toco e aparentemente fumando um cachimbo, ou a de índios portando arcos e fundas. Mas de todas as imagens a que mais chamou a atenção de Astolfo foi a de um homem negro, usando um saiote vermelho e branco, coroa dourada na cabeça e dois machados nas mãos. Mais tarde ele descobriria que era a imagem representativa de Xangô, Orixá da Justiça, dos raios, do fogo vulcânico e o homenageado da noite.

Uma das pessoas de branco, uma moça loira de aparentemente uns 23 anos,  ao dirigir-se ao portão com um prato de farofa e uma jarra de água, acabou assustando o observador atento ao bater palmas enquanto cantava algumas palavras incompreensíveis a ele, das quais ele se recorda somente de ouvir "Laroie Exu, abre nossos caminhos e protege a nossa engira". Sobressaltado com a repentina aparição Astolfo tropeça nos próprios pés e quase cai não fosse amparado pela moça no portão.

Após recobrar-se do ocorrido, agradece a jovem moça e decide prosseguir caminho à casa. Porém as pernas não obedecem ao comando do cérebro e decidem não se mover. A moça toda prestativa chama uma das pessoas de dentro da casa e juntos levam Astolfo para dentro, que além de imóvel, ficou branco como as roupas usadas pelas pessoas de dentro da casa.

Já dentro do terreiro, envolto pelo cheiro das ervas, som das palmas e depois de receber alguns chacoalzões de outra jovem moça, esta branca mas de cabelos ruivos, que comportava-se como alguém com fortes dores nas costas e usando bengalas, Astolfo recobra a consciência e devagar vai sentindo novamente as pernas.

A jovem ruiva, num vocabulário que lembrava o século XVII pergunta:
- Tudo formoso mizifiô? Mizifiô é bem vindo nesta casa. Xangô trouxe vossuncê até a casa dele pra dizer a vossuncê que mizifiô precisa mudar os modos como anda fazendo as coisas. - fala  a jovem entre uma tragada e outra de um cachimbo - Mizifiô ganhou hoje do Orixá da Justiça a última oportunidade de mudança. Mizifiõ tem agido mal no trabalho, tem maltratado os curumim que faz mais de três luas grande que num vê o pai,e essa nova rabo de saia que vossuncê encontro, vossuncê vai tratar como animal como fez com as outras?

- Quem lhe disse tudo isso? - questiona Astolfo assustado- Que tipo de brincadeira é essa?

- Quem me disse fiô? Ninguém precisa dizer nada pra nega veia não. Nega Veia Vó Juventina vê tudo na aura de vossuncê. A aura da gente é como os traço do dedo, dizem quem somos e o que fazemos. - Responde a jovem, explicando também tratar-se não da moça que ele vê, mas de uma entidade espiritual, uma preta velha, que atende pelo nome de Vó Juventina da Bahia - Vossuncê é médium fio, é mensageiro dos Orixás é cavalo dos guias, e Xangô trouxe filho até aqui pra mostrar caminho novo.

Terminando de falar isso a preta velha faz sinal em direção a um grupo de pessoas que começam a cantar uma cantiga mais ou menos assim:

" São João Batista é Xangô, é dono do meu destinho até o fim. Se um dia me faltar, a fé no meu senhor, que role essa pedra sobre mim"

Ao som do cântico e das palmas que o acompanharam, Astolfo começou a sentir-se estranho, tonto, como se algo, não, como se alguém o empurrasse pelas costas. Algo dentro dele começou a pulsar mais forte seguindo o ritmo das palmas, até que ele perde o comando dos sentidos e seu corpo já não o obedecesse e todos em volta percebem quando Astolfo, agora incorporado com o Orixá Xangô brada:

" Kaô. Kaô"

E enquanto brada, Xangô de posse do corpo de Astolfo, dança, canta e distribui seu axé para os presentes. Vó Juventina levanta-se do toco onde estivera todo esse tempo sentada e prostrasse diante de Xangô, encostando a testa no chão por três vezes. Xangô mediunizado em Astolfo brada " Kaô, Kaô" mais uma vez e desincorpora, ou sobe como explicou Vó Juventina, voltando para o Orun morada dos Orixás.

Astolfo, mais assustado do que nunca estivera em toda sua vida, ao tomar novamente controle e consciência do seu corpo vira-se em direção a saída do terreiro e começa a dirigir-se até ela. Ao cruzar os umbrais da porta ouve a voz de Vó Juventina alertando-o:

- Xangô é duro como a pedra, mas também é misericordioso. Se vossuncê decidir mudar e ser uma pessoa melhor para você e para os outros Xangô muda a sentença, caso permaneça no erro, ainda hoje ele vem buscar mizifiô.


----- Continua-----